sábado, 2 de maio de 2009

Polaris - H P Lovecraft

http://www.4shared.com/file/103063828/5d7d4f88/polaris.html

Este conto de Lovecraft retrata a imagem de uma
cidade hiperbórea

"Estrela Polar" já foi um dos nomes da Estrela de Davi, aquela que tenta iludir o sentinela e fazê-lo cair no sono

O seguinte texto (o mesmo do link) foi convertido a partir de um arquivo de imagem.

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Pela janela norte de meu quarto brilha a Estrela Polar com misteriosa luz. E durante as diabolicas longas horas de escuridão, ela ali brilha. E na estação outonal, quando os ventos do norte imprecam e lamentam, e as arvores de folhas avermelhadas do pantano murmuram umas para as outras nas primeiras horas da madrugada sob a lua minguante, sento-me ao pé do caixilho e fico observando essa estrela. Descendo das alturas cambaleia a cintilante Cassiopéia a medida que as horas passam, enquanto a Ursa Maior assoma por tras das arvores do pantano vaporoso que se embalam ao sopro da viração noturna. Pouco antes da aurora, Arcturus pisca incendida acima do cemiterio, sobre o outeiro, e a Cabeleira de Berenice tremula fantasmagórica e distante no misterioso leste, mas a Estrela Polar espreita ainda do mesmo lugar na escura abobada, piscando odiosamente com um insano olho vigilante que se esforça para transmitir alguma estranha mensagem, sem nada evocar exceto que algum dia teve alguma mensagem a transmitir. As vezes, com tempo nublado, consigo dormir.
Recordo-me perfeitamente da noite da grande Aurora, quando brincavam sobre o pantano as repelentes fulgurações da diabolica luz. Depois da luz vieram nuvens, e entao dormi.
E foi sob uma lua minguante que avistei a cidade pela primeira vez. Calma e sonolenta ela jazia sobre um estranho platô numa depressão entre estranhos picos. De marmore extasiante eram suas muralhas e suas torres, suas colunas, domos e pisos. Nas ruas de marmore, erguiam-se pilares de marmore cujos topos eram entalhados com as imagens de graves homens barbados. O ar estava tepido e calmo. E no alto, a cerca de dez graus do zenite, luzia a vigilante Estrela Polar. Mirei longamente a cidade, mas o dia não veio. Quando a rubra Aldebaran, que piscava a baixa altura no ceu , mas nunca se punha havia se arrastado por um quarto do caminho do horizonte, avistei luz e movimento nas casas e nas ruas. Circulavam por ela formas curiosamente trajadas, mas ao mesmo tempo nobres e familiares, e, sob a lua, homens conversavam sabiamente numa lingua que eu jamais conhecera. E quando a rubra Aldebaran se arrastara por mais da metade do horizonte, houve novamente escuridao e silencio.
Quando despertei, havia mudado. Gravada em minha memoria estava a visão da cidade, e dentro de minha alma surgia uma outra e vaga recordação, de cuja natureza nao estava bem certo. Dali em diante, nas noites nubladas em que conseguia dormir, via frequentemente a cidade; as vezes sob os tepidos raios amarelos de um sol que nunca se punha, circulando a baixa altura da linha do horizonte. E, nas noites claras, a Estrela Polar espreitava como nunca.

Gradualmente comecei a meditar sobre o lugar que poderia ocupar naquela cidade no estranho plato entre estranhos picos. Inicialmente contente de ver a cena como um observador etereamente presente, agora desejava definir minha relação com ela e abrir minha mente entre os homens graves que palestravam cotidianamente nas pragas publicas. Disse para mim mesmo: "Isto não e um sonho, pois de que outra maneira poderei provar a realidade verdadeira daquela outra vida na casa de pedra e tijolo ao sul do sinistra pantano e do cemiterio sobre o outeiro, onde a Estrela Polar espreita por minha janela do norte a cada noite?"
Certa noite, enquanto escutava a conversa na grande praga repleta de estatuas, senti uma mudança e percebi que pelo menos havia conseguido uma forma corporea. Tambem ja nao era um estranho nas ruas de Olathoe, que fica sobre o planalto de Sarkia, entre os picos Noton e Kadiphonek. Foi meu amigo Aios quern falou, e sua fala deleitou minha alma pois era a fala de um homem integro e patriotico. Naquela noite chegaram noticias da queda de Daikos e do avanço dos Inutos, infernais demonios amarelos atarracados que tinham surgido havia cinco anos vindo do desconhecido oeste para saquear os confins de nosso reino e sitiar muitas de nossas cidades. Tendo tornado as fortificaçoes no sope das montanhas, seu caminho estava agora aberto para o planalto, a menos que cada cidadao pudesse resistir com a força de dez homens. Pois as criaturas atalTacadas eram poderosas nas artes da guerra e nao tinham os escrupulos de honra que vedavam a nossos homens altos e de olhos cinzentos de Lomar a conquista implacavel.
Aios, meu amigo, era comandante de todas as forças do planalto e nele estavam depositadas as ultimas esperanças de nossa terra. Nesta ocasiao, ele falou dos perigos que deveriam ser enfrentados e exortou os homens de Olathoe, os mais bravos entre os lomarianos, a honrar as tradiçoes de seus ancestrais que, forçados a se deslocar para o sul de Zobna antes do avanço do grande lençol de gelo (assim como nossos descendentes algum dia terao que fugir da terra de Lomar), varreram com bravura e vitoriosamente os Gnophkehs, peludos canibais de longas armas que se atravessaram em seu caminho. Para mim, Aios negou participaçao nas atividades belicas, pois eu era fragil e sujeito a estranhos desmaios quando exposto a situaçoes de tensao e fadiga. Mas meus olhos eram os mais penetrantes da cidade apesar das longas horas que dispensava, todos os dias, ao estudo dos Manuscritos Pnakoticos e a sabedoria dos Patriarcas Zobnarianos. Meu amigo, nao querendo condenar-me a inaçao, recompensou-me com um dever cuja importancia nao era inferior a nenhuma outra. Enviou-me para a torre de vigia de Thapnen para servir de olhos ao nosso exercito. Se os Inutos tentassem tomar a cidadela pelo estreito passo por tras do pico Noton surpreendendo assim a guarnigao, eu devia dar o sinal de fogo que preveniria os soldados de prontidao e salvaria a cidade do desastre iminente.
Galguei a torre sozinho, pois todo homem saudavel era necessario nos desfiladeiros abaixo. Meu cerebro estava fortemente entorpecido de excitaçao e fadiga, pois nao tinha dormido durante muitos dias. Minha disposiçao, porem, era firme, pois amava minha terra natal de Lomar e a cidade de marmore de Olathoe entre os picos Noton e Kadiphonek. Mas enquanto me quedava na mais alta camara da torre, avistei a lua, rubra e sinistra, tremeluzindo atraves dos vapores que pairavam sobre o distante vale de Banof. E por uma abertura no telhado ardia a palida Estrela Polar, flutuando como se estivesse viva e espreitando como um demonio tentador. Creio que seu espirito sussurrava maus conselhos, provocando-me uma traiçoeira sonolencia com a abominavel promessa ritmada que repetia incessantemente:
Dorme, guarda, ate as esferas
Terem rodopiado mil eras
E que eu arda ao voltar
Onde agora é o meu lugar.
Novos astros vão chegar
Para no ceu se instalar;
Astros que louvam, acalantam
E o suave olvido implantam:
Só quando encerrar o meu giro
O passado inquietará teu retire
Lutei inutilmente contra a sonolencia, tentando relacionar essas estranhas palavras com algum conhecimento dos ceus que aprendera nos Manuscritos Pnakoticos. Minha cabeça, pesada e cabeceando, caiu sobre o peito, e quando tornei a olhar para cima, foi num sonho, com a Estrela Polar sorrindo para mim, atraves de uma janela, de cima das horrendas arvores balouçantes de um pantano onirico. E continuo sonhando.
Em minha vergonha e desespero, as vezes grito freneticamente implorando que as oniricas criaturas que me cercam me despertem antes que os Inutos cruzem o passo atras do pico Noton e tomem a cidadela de surpresa. Mas essas criaturas sao demonios, pois riem para mim e dizem-me que nao estou sonhando. Elas zombam de mim enquanto durmo e enquanto os atarracados inimigos amarelos podem estar rastejando silenciosamente para cair sobre nos. Faltei com meu dever e trai a cidade de marmore de Olathoe; fui desleal a Aios, meu amigo e comandante. Mas essas sombras de meus sonhos ainda zombam de mim. Dizem que nao existe uma terra de Lomar exceto em minhas fantasias noturnas; que nesses remos onde brilha, no alto, a Estrela Polar, e a vermelha Aldebaran se arrasta a baixa altura no horizonte, nunca houve nada, por milhares de anos, exceto gelo e neve, e homem nenhum, exceto as atarracadas criaturas amarelas, fustigadas pelo frio, a quern chamam de "Esquimos".
E enquanto escrevo em culposa agonia, ansiando pela salvaçao da cidade cujo perigo cresce a cada instante, lutando inutilmente para me livrar desse sono desnaturado de uma casa de pedra e tijolo ao sul de um pantano sinistra e um cemiterio num outeiro, a Estrela Polar, funesta e monstruosa, espreita para baixo da negra abobada, piscando odiosamente como um insano olho vigilante, esforçando-se para enviar alguma mensagem que nada evoca exceto que algum dia teve uma mensagem a enviar

Um comentário:

  1. Esse é o início dos contos de Lovecraft em que ele contava seus sonhos... Me admira essa história por ao acabar, duvidarmos da sanidade do narrador, que ou está trancafiado em seu sonho, ou aceita mal a sua realidade na casa de tijolos banhada pelo pântano.

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